Coutinho, o gato biónico que se salvou em Portugal 04.09.2017  

Está cada vez mais avançada a medicina veterinária, e dela já se podem esperar milagres em áreas tão complexas como a cirurgia ortopédica ou o tratamento do cancro. Foi um desses milagres providenciados tanto pela solidariedade como pelo avanço científico que devolveu o andar a Coutinho, um gato de rua amputado que se tornou no primeiro a receber duas patas biónicas em Portugal, pelas mãos do cirurgião Henrique Armés, no Hospital Veterinário de São Bento, em Lisboa.  

O primeiro gato na Europa sujeito a esta intervenção foi Oscar, que vivia na ilha de Jersey com os donos, Kate Allan e Mike Nolan. Em 2009, uma ceifeira levou-lhe as duas pernas e nesse mesmo ano recebeu duas patas biónicas. Por ser o primeiro, Oscar ficou conhecido como o “gato biónico”. Na altura que Oscar foi operado, a técnica – que dá pelo nome de próteses de amputação intraósseas transcutâneas – estava ainda a ser testada em seres humanos e, neste caso concreto, foi até a medicina veterinária que contribuiu para o avanço da medicina humana. Um livro, ‘Oscar, the Bionic Cat’ foi publicado em 2013 com a sua história de vida. Mas a de Coutinho não fica nada atrás…

O CASO DE COUTINHO
A história de Coutinho começa há pouco mais de um ano, num dia que teve um desfecho particularmente trágico nas instalações da Associação de Defesa dos Animais e Plantas de Olhão – ADAPO.

A limpeza de um terreno abandonado acabou da pior forma para um dos gatos de rua, que foi atropelado por uma retroescavadora. A associação foi chamada à pressa pelos vizinhos. Os animais andavam à deriva e, no meio do lixo, as voluntárias da ADAPO retiraram o bichano, ainda bebé, com as patas traseiras desfeitas.

O animal foi prontamente levado para a marquesa de um veterinário amigo da associação, que lhe estancou as hemorragias, mas pouco mais pôde fazer por ele. “No início, chegámos a pensar que ele não sobreviveria. Era muito frágil e pequenino, mas lutou e sobreviveu”, relembra Nádia.

Os meses foram passando e Coutinho, conforme foi batizado na ADAPO, foi crescendo sem que nunca desistissem dele. Nádia Sousa, uma das voluntárias, explica que foram contactados vários veterinários. “Um deles alvitrou a hipótese dos implantes”, recorda.

Parte significativa dos movimentos naturais do patudo podia ser recuperada com uma cirurgia pioneira, sugeriu o médico, explicando que isso era facilitado pelo facto de as próteses serem conectadas ao corpo dos animais internamente, através de pinos metálicos. O processo consegue até fazer com que, por vezes, cresçam ossos e pele ao redor dos pinos, segundo se lê em alguns artigos internacionais.

Só que isso não podia ser feito no Algarve. Era uma cirurgia raríssima e avançada. Todavia, o médico de Olhão tinha ouvido falar de um colega em Lisboa que já a tinha feito com sucesso. Afinal, a cura para Coutinho não estava assim tão longe. Os contactos foram passados e dias depois, Henrique Armés, responsável pelo Hospital Veterinário de São Bento, em Lisboa, estava a ler a história de Coutinho no seu email.

Depois de conhecer Coutinho e avaliar atentamente o caso, Henrique Armés assumiu o risco e decidiu avançar com a cirurgia. Coutinho vinha assim de ‘malas e bagagens’ para Lisboa, em busca da autonomia que o acidente comprometera.

PROCEDIMENTO CIRÚRGICO
No dia da primeira operação (que serve para o implante da endoprótese), Coutinho não estava muito colaborante. Uma vida inteira de sofrimento não o levaram a encarar com bom ânimo as intervenções médicas. Só depois da anestesia acalmou, obviamente. A equipa de Henrique Armés já está habituada a lidar com os pacientes mais nervosos e foi com mimos e festas que a enfermeira Cristina o conseguiu imobilizar para a necessária injeção.

A operação durou cerca de hora e meia, no posto de cirurgia avançada do Hospital Veterinário de São Bento. Só no final, o cirurgião confirmou que tudo correu como o esperado: “Foi colocado o implante na tíbia, esperando-se que o osso consiga integrar o metal que depois vai servir de suporte ao membro biónico exterior”. No fundo, uma técnica idêntica aquela que é aplicada em humanos com o objetivo de substituir e reabilitar o membro perdido.

Em Portugal (e em qualquer outro lugar do Mundo), não é uma operação comum, apesar de a primeira ter sido feita no ano 2000, também pelo cirurgião Henrique Armés, ali mesmo no Hospital Veterinário de São Bento, a uma cadela que respondia pelo nome de Sultana. “Os primeiros foram todos cães. Devem ter sido uns 15. Mas, ainda assim, é pioneira, pois este foi o primeiro gato que levou duas próteses. Já anteriormente havia sido feita a um gato, mas apenas para a implantação de um membro. De dois é a primeira vez”, confirmou o cirurgião.

Além de ser um gato, o caso de Coutinho era particularmente complexo: “um animal muito pequeno, que tinha ainda a particularidade de estar politraumatizado e com o osso muito fragmentado o que coloca dificuldade adicional ao cirurgião. Um dos ossos estava mesmo muito danificado”, acrescentou o médico.

Mas a verdadeira revolução reside “mais na inovação ao nível dos materiais e a sua atuação no organismo (o fato do titânico poder ser integrado pelo osso) do que propriamente na técnica cirúrgica”, explicou à Domingo.

A recuperação é muito semelhante a qualquer outra cirurgia ortopédica e demora algum tempo para se ter a certeza de que tudo ficou no sítio correto. Nos primeiros dias, Coutinho precisou de apoio analgésico, mas “fora isso foi uma recuperação convencional”. Dois meses depois, Coutinho recebeu então as exopróteses. “Agora já pode andar, saltar e ter a sua mobilidade, o que certamente lhe trará muita felicidade”, frisa o médico.

Infelizmente, casos de animais amputados em virtude de acidentes não são assim tão raros nos hospitais veterinários portugueses. “Aparecem bastantes, mas não é possível aplicar próteses em todos, muito pelo contrário. Tudo depende das condições do osso e da pressão proximal do membro, mas existem casos favoráveis à cirurgia de reabilitação”, explica Henrique Armés.

As primeiras próteses biónicas usadas em Portugal foram concebidas em parceria com o Instituto Superior Técnico, mas atualmente o médico trabalha com uma empresa nacional (PIEPE), especializada em compósitos de carbono, que cria as próteses à medida. O custo anda pelos 500 euros cada, valor que, neste caso, será custeado pelo veterinário. Aliás, tudo o resto foi feito ‘pro bono’ pelo Hospital Veterinário de São Bento.

Agora, só o tempo irá completar a recuperação e mostrar quantas tropelias Coutinho poderá fazer com as suas novas patinhas. Logo nas primeiras 24 horas, já dava sinais de querer correr e pular pelas salas do hospital. “Podemos ainda recorrer à fisioterapia, mas precisamos sobretudo de lhe dar tempo”, remata o médico. Para o seu final ser mesmo feliz, só falta encontrar uma nova família para Coutinho. É que no meio de tantas andanças, ele continua sem dono. ” E ele merece uma ótima família de acolhimento, que o faça feliz, e que ajude no recobro”, finaliza Armés.

EVOLUÇÃO NATURAL
Jorge Cid, bastonário da Ordem dos Veterinários, garante que os veterinários portugueses estão “entre os melhores do Mundo”, com um “elevado nível de formação” e que, hoje em dia, “já é possível fazer na veterinária quase tudo o que se faz na medicina humana”, avanço que não é estranho à “inovação tecnológica”.

“A cirurgia conheceu grandes avanços. Tal como a oftalmologia, a laparoscopia e o tratamento de patologias cancerígenas. Muito graças à imagiologia. O RX, a ressonância, o ecógrafo, o microscópio cirúrgico, etc., são exatamente iguais aos que se usam na medicina humana e proporcionaram condições extraordinárias”. A grande diferença é a variável económica, que traz constrangimentos.

“Nunca nos podemos esquecer que a medicina humana é comparticipada e a veterinária não. Ainda por cima é onerada em 23 por cento. O custo de qualquer exame ou cirurgia é elevadíssimo”. A título de exemplo: um TAC a um cão custa 250 euros, uma ressonância magnética entre 400 e 500. Preços médios e com IVA, frisa o bastonário.

Uma cirurgia ortopédica ou às cataratas, as mais dispendiosas, fica “entre os mil e os 1500 euros”, informa o bastonário. Combater um tumor também tem um custo elevado: “Se for só com quimioterapia, anda pelos 500/600 euros (cada sessão custa cem). Se for preciso recorrer à cirurgia, vai para o dobro”, avisa.

Jorge Cid refere ainda limites que vão da própria perspetiva dos donos. “Depende daquilo que julgam que é qualidade de vida e até que ponto é legítimo prolongar certas situações. Há quem aceite logo a hipótese da colocação de um carrinho para um cão amputado e há quem diga que nem pensar! Mas o veterinário tem de apresentar todas as hipóteses e congratula-se por ter cada vez mais soluções para deixar animais e donos mais felizes”. O bastonário refere como exemplo as cirurgias às cataratas. “Os donos vêm com os cães praticamente cegos, muito perturbados e tristes porque veem os seus animais desorientados, a derrubar coisas, a tropeçar e depois, de repente, saem daqui curados. É uma grande felicidade para ambos”, nota. Até porque hoje em dia, o animal tem cada vez mais importância na vida do dono. “Sobretudo nas grandes cidades, as pessoas vivem cada vez mais afastadas da família, dos amigos e dos vizinhos e, às vezes, só têm o animal. Fazem tudo por ele. Às vezes fazem mais por ele do que por elas próprias”.

DOUTORES DE BICHOS 

Portugueses entre os melhores do mundo
“Os veterinários portugueses estão entre os melhores do Mundo e têm vindo a trabalhar com enorme sucesso lá fora, até porque têm um conhecimento muito vasto, ao contrário de outros países onde os médicos são mais especializados em áreas específicas”, diz o bastonário.

Tempo de vida igual e mais qualidade
A esperança de vida de Coutinho é igual “à de qualquer outro gato” mas a sua qualidade de vida “vai melhorar muito” porque vai poder locomover-se e ser autónomo, de acordo com o cirurgião que o operou.  

NOVIDADE NA BULGÁRIA 

Pooh também voltou a andar
Ainda em Abril deste ano, um gato chamado Pooh foi notícia nas agências internacionais por ter voltado a andar graças a um conjunto de patas biónicas implantadas em Sofia, na Bulgária. Foi a primeira cirurgia do género naquele país. O gatinho de um ano foi encontrado ferido perto da cidade de Pleven. Meses mais tarde, o cirurgião Vladislav Zlatinov colocou dois implantes.

https://virtualgarve.com/2017/09/03/coutinho-o-gato-bionico-que-se-salvou-em-portugal-exclusivos/